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ANOTHER ROUND DE RECOMENDAÇÕES
Uma equipa de psiquiatras russos desenvolveu um estudo onde arrisca dizer que pessoas que dormem pouco são mais criativas, e é a ele que me agarro para justificar as nunca mais de seis horas do meu sono diário. Recuso-me a acreditar numa tese concorrente, rabiscada em França, que afirma com propriedade que noctívagos têm maior probabilidade de contrair doenças cardiovasculares. É tanga.
Quando tantos negócios começam a fechar por causa de umas malditas moléculas virais, estes estudos pouco científicos continuam a ganhar mercado. Estudo diz que vacina provoca trombose. Estudo diz que papagaios sabem ler. Estudo diz que estudos não fazem sentido. Estamos sedentos de respostas e acabamos por procurá-las num artigo do Buzzfeed que se usa da palavra “estudo” para enumerar considerações sobre determinado assunto.
Foi isso que também fizeram quatro docentes cansados de uma rotina monótona da qual se sentiam reféns. Agarraram-se a um estudo de um psiquiatra norueguês, cujo nome não me é permitido escrever pela falta de caracteres escandinavos no meu teclado, que diz que o corpo humano nasce com um défice de 0,05% de álcool no sangue, e foram para os copos. Tentaram provar empiricamente a teoria, entrando num estado permanente de embriaguez. É esta a premissa de "Another Round", o mais recente filme de Thomas Vinterberg com um competentíssimo bêbado Mads Mikkelsen no papel principal.
Enquanto as luzes se voltavam a ligar e os créditos do filme rodavam na tela da sala 2 do Amoreiras, uma certa confusão sobre aquilo que ali tinha acontecido nas últimas duas horas tomou conta de mim.
Tal e qual uma noite de copos, a mensagem do filme estava turva, confusa, e precisei de dormir sobre o assunto para juntar os pontos na manhã seguinte. Acordado de um sono pouco produtivo, mas que (diz um estudo russo) me coloca como uma pessoa criativa, tentei recuperar aquele tempo numa sala de cinema onde experimentei euforia, prazer, ansiedade e uma letargia profunda. O que é que estes gajos quiseram com aquilo?
Tive logo um flashback daquilo que tinha acontecido. A certa altura, um dos quatro professores diz que “Nós não somos alcoólicos. Nós decidimos quando queremos beber. Um alcoólico não se consegue ajudar a si mesmo”. Mas quem vê aquilo de fora começa a perceber para onde se encaminha aquela “experiência”. Os tipos estão a beber cada vez mais e a projetar no estudo a desculpa para esse caminho em direção ao alcoolismo.
É neste limbo entre o êxtase e a miséria que a jornada daquelas quatro pessoas se começa a desenrolar. Ora vemos trejeitos de euforia, ora profundos rasgos de miséria. Ora um deles nos aparece em tronco nu insensível aos poucos graus positivos de um inverno dinamarquês, ora cambaleia em direção a uma inevitável adição. Ora o álcool os conduz a uma confiança insuflada perante uma plateia de alunos poucos interessados nos feitos de Churchill, ora os deprime no silêncio da noite. Há espaço para um deles se projetar do balcão de um bar para um mar de braços que o recebe em crowd-surfing, mas também para vê-lo cair redondo no chão num estado de sedação comparável ao de quem vai entrar no bloco operatório para retirar um quisto do testículo.
Foi dessa dupla realidade que saí inconformado. O raio do filme não me dá uma redenção. Cheguei a sentir alguma impotência para resolver a história nos últimos dez minutos. Não procura dizer categoricamente que o álcool é uma merda, mas também não me convence de que é bom. Mostra alguma sedução no estado de embriaguez, sempre com pano de fundo da melancolia de quatro infelizes em direção ao abismo.
Apercebi-me então, qual raio de lucidez após uma ressaca daquelas, que na minha análise estava a fazer o mesmo que aqueles quatro amigos: estava à procura de respostas no álcool.
O álcool nunca foi o problema daqueles senhores, mas sim a solução que procuraram. Os problemas já lá estavam antes da embriaguez. A constante piela em que passaram a viver apenas veio revelar as fragilidades até aí camufladas pelo seu discernimento que, sob o efeito do álcool, se começou a tornar menos competente.
É aqui que tudo começa a fazer sentido. O filme até ganha alguns contornos científicos quando, perante a mesma quantidade de álcool, vemos que cada um dos quatro percorre caminhos diferentes. Tal como num estudo de laboratório com ratinhos, onde há um grupo de controlo que sofre nenhuma intervenção, e um grupo experimental a quem é feita uma alteração que se pretende testar, também no filme vemos isso. O efeito do álcool em cada um deles passa a ser uma experiência muito pessoal, que depende em grande parte daquilo que já estava para trás. É essa a confirmação de que não é só sobre o álcool que se está ali a falar.
Claro que o autor também quer alfinetar a boémia normalizada em que vivemos, sobretudo na Dinamarca onde é normal regar um almoço com doses industriais de jola. Mas nunca, durante o filme, se escolhe culpabilizar o álcool por alguma coisa. O absinto, a cerveja, a vodka foram consequências das inseguranças, das frustrações familiares, da vida pessoal errante de cada um deles e de mais uma série de coisas com as quais todos nos identificamos.
Pode não haver evidência científica robusta de que nascemos com um défice de álcool no sangue, mas há poucas dúvidas de que nascemos com um défice de certezas daquilo que queremos ser no nosso caminho.
Guilherme Geirinhas
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